O pão de mel é nove


Foto do balcão de uma cafeteria, com a estufa de alimentos em primeiro plano e equipamentos, luzes e menus atrás. Foto de Lisa em Pexels


— Bom dia, vai ser o que hoje?

— Um frapuccino, por favor. E esse pão de mel aqui. Tá quanto ele?

— Nove.

— Hm. Só o frapuccino.

— Claro.

— Quinze reais, pagamento?

— Crédito.

— Pode inserir ou aproximar. Seu nome?

— Rafael.

— Obrigada, Rafael. Só aguardar que vão te chamar pelo nome.

— Obrigado.

— Próximo?

— Oi, bom dia.

— Bom dia, senhora.

— Nossa, tão corrido o dia hoje.

— Ô.

— Tá fácil pra ninguém.

— Pois é.

— Tá fácil não.

— Qual vai ser o pedido da senhora?

— Vai ser só o café.

— Qual tipo vai ser?

— Café.

— Perdão, o tipo. A senhora quer expresso, coado, temos o cardápio aqui.

— Hm.

— A senhora quer ver o cardápio?

— O que vocês têm?

— Que tipo de café a senhora gosta? Mais tradicional, doce, frio?

— Credo, café frio?

— Nós temos algumas opções.

— Cadê o cardápio?

— Logo aqui, senhora.

— Só tem isso de opção?

— Tem do outro lado também, as opções mais doces.

—  Ó. É mesmo.

— Frapuccino, mocaccino, tem milk-shake com café também.

— Ah, não, são sete e meia da manhã.

— É.

— Dia já começa agitado.

— Pois é.

— E são só essas opções?

— Na frente e no verso.

— Suco, vocês tem?

— Não, senhora.

— Hm.

— E pra comer?

— As opções ficam aqui na estufa. Temos pão de queijo, coxinha…

— Esse pão de mel tá quanto?

— Ele é nove.

— Nossa. Desse tamanho?

— Temos o brownie também.

— Ele é quanto?

— Também é nove.

— E o pão de queijo?

— Sete. Tem as plaquinhas aqui.

— Ah… Acho que quero só o café.

— Qual tipo?

— O que vocês têm?

— As opções no menu, senhora. Aqui os mais simples. Aqui umas opções especiais. Os doces atrás.

— Nossa, café frio, né?

— Quer um deles?

— Credo, claro que não. Me vê só um café mesmo.

— Expresso, coado, americano?

— O comum.

— Coado?

— O comum.

— Certo. Certo senhora. Normal ou duplo?

— Qual é a diferença?

— No coado tá aqui, ó.

— Esse é o comum?

— É, coado.

— Nossa, mas é o dobro, é muita coisa.

— Vai ser o normal então?

— Isso, o comum.

— O coado, mas normal ou duplo?

— O comum normal. O básico.

— Tá certo. Forma de pagamento?

— Dinheiro.

— Seis reais, qual é o nome da senhora?

— Lica.

— Tá certo, Dona Lica. Só esperar que vão chamar pelo nome.

— Esperar ali?

— Onde a senhora quiser, fica à vontade.

— Mas vão chamar onde?

— Ali no balcão.

— Eu posso ficar lá?

— Claro.

— Mas eu queria me sentar…

— A senhora pode se sentar, quer que a gente leve pra senhora?

— Ah, não quero dar trabalho.

— Mas a senhora vai ouvir chamar seu nome, pode ficar tranquila.

— Mas só tem mesa lá, eu vou ouvir?

— Vai sim, a gente leva pra senhora, não se preocupe.

— Não, não. Eu só quero saber se vou ouvir. Eu tô bem das pernas ainda, menina.

— Claro. A senhora vai ouvir sim.

— Tá bom, obrigada.

— Obrigada a senhora.

— Amiga, ficou sabendo da fofoca?

— Ih, peraí que a fila deu uma aumentada.

— Corre aí que eu tenho que te falar.

— É sobre aque–

— Pode me atender, por favor?

— Desculpa, senhor. Qual é o seu pe–

— Eu tô faz meia hora nessa fila, que servicinho, hein?

— Desculpa, senhor, esse horário é bastante movimentado.

— Não tá parecendo, se vocês podem ficar aí de conversinha.

— Claro, desculpa pelo inconveniente. Pode me passar seu pedido.

— Se eu chamo seu gerente, quero ver se vocês ficam assim de cochicho.

— Ela é minha gerente, senhor. Quer que eu chame?

— Hm. Devia chamar só pela insolência. Mas pelo jeito, é igual.

— Claro. O pedido?

— Esse é o problema, sabe? Quem trabalha agora é tudo assim.

— Se o se–

— O dono põe dinheiro do bolso, às vezes até pega empréstimo, faz o sacrifício.

— E–

— O trabalhador não tá nem aí. Tá tudo ao contrário hoje em dia. Só olhar praquela ali.

— Senhor…

— Aí a gente que fala isso, que quer as coisas certas, é que passa de vilão.

— O seu pedido?

— É, né, fazer o quê. Um café, só.

— Qual tipo? Temos mais tradicionais, frios, doces, pode dar uma olhada no cardá–

— É o problema aí, ó. Na minha época, café era café e pronto.

— O senhor vai querer o coado, então?

— Ficam inventando coisa, tudo tem que ser diferente.

— Cada pessoa tem seu gosto.

— É diversidade que chama, né? É tudo isso agora. Essa merda.

— O senhor quer ter menos opções?

— Quê? Como que uma caixa fala assim comigo? Quem você pensa que é?

— Eu só estou te atendendo, senhor.

— Está me respondendo, isso sim.

— É que o senhor disse que já estava esperando a mu–

— Dá vontade de ir embora sem pagar nada, mas eu fico com pena.

— Com pena?

— Com pena do seu chefe. Do dono aqui. Perdendo cliente por causa de trabalhador mal-educado.

— Se o senhor quiser entrar em conta–

— Me vê logo esse café pra não piorar ainda mais o meu dia.

— Qual tipo senhor?

— Café, menina. Café!

— Um café coado, então. Normal ou duplo?

— Pra quê tanta opção? Café, pelo amor.

— Seis reais, senhor.

— Nossa, finalmente!

— Qual é o nome do senhor?

— E pra que que você quer saber, hein?

— Vão te chamar pelo nome quando tiver pronto.

— Não tem senha?

— Não. É pelo nome.

— Que negócio desorganizado. E se tiver dois com o mesmo nome? É Felipe.

— Tá certo senhor, forma de pagamento?

— Crédito.

— Quer sua via?

— Quero.

— Aqui está, senhor.

— Vocês ficam com a via só pra gente não perceber que tão passando errado.

— Passei o seu pedido, senhor, seis reais. Pode conferir.

— Nunca mais venho nessa espelunca.

— Volte sempre.

— Nunca mais. Bando de matraca de pena colorida.

— Fi-… Próximo?

— Bom dia.

— Bom dia.

— Vou querer um macchiato duplo e um pão de queijo.

— Macchiato e um… Mais alguma coisa?

— Só isso.

— Deu dezesseis. Pagamento?

— Crédito.

— Pode inserir ou aproximar. Qual seu nome?

— Larissa.

— Obrigada, Larissa. Vão te chamar pelo nome.

— Obrigada.

— Próximo, por favor.

— Oi, bom dia.

— Bom dia.

— Aqui, deixa eu te perguntar, eu tava tentando fazer o pedido pelo app.

— Sim?

— Tem esse cupom de um expresso mais pão de queijo por dez.

— Isso mesmo. Vai querer ele?

— Eu quero, mas não tô conseguindo resgatar o cupom.

— Você já é cadastrado?

— Sou, tô logado aqui.

— Posso ver?

— Aqui, tá vendo? Eu aperto resgatar e fica rodando a rodinha sem parar.

— Tá conectado?

— Nos dados, sim.

— Não quer tentar pelo wi-fi da loja?

— Ah, não, eu não vou parar a fila toda. Coitado de todo mundo.

— É rapidinho.

— Ah, sei que nunca é.

— É só conectar, a senha é essa aqui.

— Eu sei que a senha é essa. Eu trabalho com computador o dia inteiro.

— Você não quer conectar?

— Eu não confio em conexão pública. Pode ter um monte de coisa nessa rede.

— Nós temos uma equipe de TI, eles tão sempre de olho.

— Eu sei o que uma equipe de TI faz, ué. Mas não confio mesmo assim.

— Desculpa, então você quer tentar de novo? Talvez foi uma instabilidade.

— Se fosse eu saberia. Instabilidade é quando o servidor não tá aguentando.

— Sim, eu se–

— As pessoas falam das coisas sem nem saber como elas funcionam.

— Mas e–

— Tá assim, todo mundo acha que sabe de tudo.

— É.

— Eu já fiz curso de programação.

— Legal.

— Eu assino canais especializados pra ficar por dentro.

— E o pedi–

— Tem um, o AlphaTecBro, você conhece?

— Não conheço.

— Viu, é isso que eu falo. Quem entende mesmo sabe.

— Claro.

— Ele tem um vídeo sobre essas redes de comércio. Sabe o que ele fala?

— Não sei, não.

— Que tem loja hoje em dia que usa isso de desculpa pra coletar dados.

— É?

— É, claro que é. E aí eles reúnem tudo pra saber dos nossos hábitos.

— Eles quem?

— Você sabe quem.

— Não sei, não.

— Essa turma aí. Eles querem expulsar a gente dos lugares. Deixar só quem eles querem.

— Expulsar de onde?

— De tudo.

— De tudo? É... Você não vai pedir nada, então?

— Tô tentando o app.

— Você falou que não ia–

— Você sabe que o desconto desse app é pra pegar nossos dados.

— Sim, pra usar como estratégia de fidelização e estudar o pú–

— Eles pegam nosso CPF pra fazer a gente sempre vir aqui.

— É o que eu tava dizendo, que–

— É tudo marketing.

— É… Claro. Só um segundo. Senhora, abriu o outro caixa. De nada.

— Já fiz várias reuniões de marketing lá na empresa.

— Legal.

— Fiz um curso na Visual Hub. Com o ex-CMO da Nike.

— Legal.

— Só de ter aula com ele é uma nota, não é qualquer um. Dez mil pra começar.

— A aula é presencial?

— Não, são vídeo aulas. Ele libera no Youtube para quem paga.

— Ah.

— Então, tudo que eles fazem com esses apps é pegar seu dado.

— Sim, o desconto é o incentivo.

— Não, não é simples assim.

— Não?

— Claro que não, até parece. Eles contam com a inocência das pessoas assim.

— Como é então?

— O desconto é para capturar a atenção e gerar engajamento.

— Foi o que eu fa–

— O engajamento aumenta o conversion rate.

— Isso, faz as pessoas virem e comprarem mais na loja.

— Se você for falar pro público geral, pode dizer isso.

— É.

— Mas a verdade é que eles querem subir o retention rate e o reselling rate, diminuir o churn.

— É a mesma coi–

— Isso é tudo explicado lá. Você parece que gosta da área. Devia estudar.

— É.

— Tem cursos mais baratos. Até grátis.

— É mesmo?

— Não vai tão fundo quanto esse do Visual Hub. Esse é pra quem quer voar.

— Nossa.

— Você põe o certificado no Linkedin e chove oferta.

— Nossa.

— Ontem a Microsoft mandou um convite pra eu ir trabalhar no vale do silício.

— Olha, você vai?

— Não, meu caminho é meu sabe. Tenho umas ideias.

— Ah.

— Várias ideias…

— E o pedido?

— Ah é. Agora foi aqui ó. Era só uma instabilidade.

— Mas você tinha fa–

— Eu mostro o QR né?

— Isso, aqui. Dez reais, crédito?

— É.

— Pode inserir ou aproximar.

— Quem insere hoje em dia, né? Eu só uso no iWatch, muito mais fácil.

— Verdade. Qual o seu nome?

— Flávio, e o seu?

— Aline.

— Aqui…

— Mais alguma coisa?

— Tava pensando, será que eu podia te chamar pra sair um dia desses?

— Oi?

— Sei lá, eu não sou disso, mas a gente se conectou tanto aqui agora.

— Desculpa, mas eu tô trabalhando.

— Claro, mas à noite, ou quando você tiver folga. Me passa seu zap?

— Desculpa, eu não posso no horário de trabalho.

— Que isso, só tô chamando pra conversar. Eu não sou esses caras chatos não.

— Eu sei, ma–

— As mulheres ficam com isso de que todo homem é ruim. Querem acabar com os homens.

— Hm.

— Eu nunca maltratei uma mulher.

—Com certeza, claro.

—Se você sair comigo, eu te mostro.

— Não, obrigada, eu tenho que continuar atendendo. Esse horário é movimentado.

— Eu sei, ué. Mas é só falar sim ou não. Fala sim. O que que tem uma saída?

— Eu não posso falar sobre isso, o senhor vai querer sua via?

— Por isso que tem tanta mulher sozinha hoje em dia.

— Se você continuar segurando a fila, vou ter que chamar minha gerente.

— Algum problema aqui?

— Ah, não. Não precisam vir se juntando em mim, não. Eu vou embora. Pode falar nada mais.

— O seu pedido já vai ser entregue senhor. Só seguir para o balcão.

— É… Servicinho de merda viu.

— Obrigada.

— Só mais uma manhã, né? Inferno.

— Só mais uma manhã.

— Vou chamar o César pra ficar aqui no caixa. Eu preciso te contar a fofoca.

— E eu preciso de um ar.

— Tô vendo. Já volto.

— Valeu… Próximo?

— Bom dia.

— Bom dia, vou querer um expresso duplo e uma água com gás.

— Claro, mais alguma coisa?

— Hm… O pão de mel tá quanto?

— Nove reais.

— Eita.

— Vai levar?

— Ah, não, só o expresso e a água.

— OK. Qual vai ser a forma de pagame–

— Oi, menina, aqui.

— Pois não, senhor Felipe?

— Erraram meu pedido, veio só esse pouquinho. Isso aqui não é nada.

— O senhor pediu o coado normal, senhor.

— Mas você não me deu opção. Não tem opção nessa joça?

— O senhor disse que queria o café comum.

— É, mas você não me falou da quantidade.

— Eu fa–

— E é só o que me faltava, caixa me respondendo.De novo.

— Eu só tô–

— Não te ensinaram que o cliente tem sempre razão?

— Mas o se–

— Francamente viu, cadê o gerente desse mequetrefo?

— Eu posso chamar a geren–

— Quer saber? Deixa pra lá, não vou perder mais meu tempo.

— É que o senhor fa–

— Eu vou é embora e nunca mais volto nesse antro de coisa.

— Eu… Ah, desculpa por isso. O seu deu quinze. Crédito ou débito?

— Ah, tem gente que é assim, não se preocupa. Vai ser no débito.

— E qual é o seu nome?

— Estefâneo.

— Perdão, Istefan?

— Não, Estefâneo.

— Ah, desculpa, Istefânio.

— Com é.

— Claro, minha cabeça hoje… Estefânio.

— Não, com é no fim.

— Istefâneo.

— Estefâneo.

— Estefâneo.

— Isso.

— Deixa eu pegar outro copo, um segundo. Assim?

— Isso.

— Quer sua via?

— Precisa não.

— Obrigada e volte sempre.

— Obrigado.

— Aline, vai respirar um pouco.

— Valeu, César. Cadê a chefe?

— Já cascou.

— Tá certa ela.

— Tá certa ela. Próximo?

— Valeu mesmo, César.

— Tá me devendo.

— Tô sim.

— Olha você aí.

— Oi chefe.

— Podia não me chamar assim?

— Não posso.

— Importante é pegar um ar.

— O ar puro e fresco do corredor do shopping.

— Viu que tá tendo promoção na Zara?

— Como se fosse fazer diferença.

— Aquela blusa que você viu na vitrine tá com vinte porcento.

— Vinte porcento de uma caralhada ainda é uma caralhada, só que menor.

— É um jeito de se colocar…

— Ainda tô pagando o conserto do computador.

— Como tá indo a faculdade?

— Eu agora odeio marketing.

— Então ela tá indo como deveria ir.

— É. Minha chefe podia me dar um aumento.

— Se eu pudesse dava. Mas eu também preciso que o meu chefe me dê um aumento.

— É só pedir.

— Rá, rá.

— Rá, rá, disse bem.

— Já conseguiu o estágio?

— Só um não remunerado.

— É, aí é foda. E aquele outro que você falou?

— Tempo integral. Não cobre o que eu ganho aqui.

— Puts.

— É, puts. Ai, ai. Mas então para assuntos mais leves. E a fofoca?

— Ah, você não vai acreditar!

— É melhor ser boa mesmo.

— Muito. Muito boa.

— Sou toda ouvidos.

 

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