Assistindo a uma história de dentro dela
Este texto NÃO CONTÉM SPOILERS de nenhuma campanha do Critical Role.
Como uma história se passa dentro da sua cabeça?
Essa é uma pergunta que pode ter milhões de respostas se você perguntar para milhões de pessoas. Por mais similar que seja nossa biologia dentro da espécie, é impressionante a quantidade de combinações que esses negocinhos chamados neurônios conseguem fazer segundo a experiência de cada um de nós.
Portanto, o que eu vou falar aqui pode não ter nada a ver com o jeito que a sua imaginação funciona. O que é o normal. Se você tem uma experiência exatamente igual a minha, não me diga. Eu tenho medo de acabar descobrindo um multiverso por acidente.
Mas, enfim, neste texto eu queria falar um pouco sobre uma jornada em um mundo imaginário de mais de 3 anos. E como narrativas diferentes podem ampliar os músculos da imaginação mesmo para um cachorro velho como eu. Vem comigo!
O meu jeitinho de acompanhar histórias
Eu imagino que existam estudos sobre formas predominantes de seres humanos imaginarem histórias escritas e contadas, o ato de transformar palavras em imagens e sentimentos. Como não é um texto informativo, eu não me dei ao trabalho, mas parece interessante. Talvez eu volte nisso no futuro.
De alguns padrões principais, essas diferenças devem se ramificar em bilhões de nuances e combinações. O que podemos fazer é compartilhar como são nossas cabeças e identificar os pontos em comum, criando aquele negocinho chamado empatia.
Então, permita-me começar por mim. Como eu crio as histórias que leio e ouço na minha cabeça? Para mim, é uma mistura de influências e das tangentes com outros tipos de mídia que gosto muito.
Especificamente, sempre tendo a fazer a narrativa se projetar na mente como um filme. Gosto e assisto muitos filmes e isso acabou moldando um pouco o jeito que cenas se realizam na minha imaginação. Enquadramento, iluminação, cortes, personagens, produção e figurino, tudo surge espontaneamente para dar forma a um punhado de letras.
É um mecanismo relativamente comum, quer dizer, eu não sou nem de longe o único a fazer isso. Mas o hábito tem um efeito colateral interessante que nunca tinha parado muito para analisar: eu nunca entro de fato nas histórias.
Como diretor da minha própria mente, sempre crio involuntariamente uma separação entre mim e o que está sendo contado. Enquadramento, iluminação, cortes, personagens, produção e figurino. Tudo isso significa encenação, uma segunda camada de fantasia que se põe entre mim e os personagens, a trama.
Veja bem, isso não atrapalha a minha experiência. Não existe jeito errado de imaginar ou acompanhar uma narrativa. É apenas uma curiosidade sobre como nosso cérebro é complexo e a sua capacidade de moldar o que entra nele por meio de nossos cinco sentidos.
O resultado é que esse modo de imaginar se tornou um hábito, um padrão que replico naturalmente. Algo que só notei quando me vi mudando o modelo sem nem perceber e começando a fazer parte de uma história pela primeira vez.
A minha abdução para outro mundo
Em BH tem uma escola de idiomas que usava o slogan “Pessoas diferentes exigem métodos diferentes”. Eu sempre achei fascinante porque é uma mensagem tão concisa e sofisticada que ela nem devia funcionar tão bem. Será que as pessoas viam valor em um lema desses mais do que um “Saia falando inglês em 6 meses”? Tenho lá minhas dúvidas.
De qualquer forma, sim, pessoas diferentes exigem métodos diferentes. Para falar inglês, para se comunicar, para ler livros, para amar.
Mas, mesmo assim, tendemos a achar que o que funciona para nós funciona para todo mundo. E que nunca conseguiremos fazer algo de outra forma além daquela que já fazemos desde sempre. É só abrir qualquer rede social para testemunhar um caso disso em, no máximo, 40 segundos.
É por isso que continuar experimentando coisas novas e vendo as coisas antigas por outro ângulo enriquece tanto nossa visão de mundo. Quem diria, não é mesmo?
Buscar experiências diferentes é o tipo de coisa que nos lembra que existe mais no mundo (real e da imaginação) do que aquilo que presenciamos todos os dias. Uma porta que nunca abrimos para outro cômodo em nossas mentes.
Foi buscando umas portas para abrir no fim da pandemia que resolvi ver o que era esse tal de Critical Role que tanta gente fala. Um bando de dubladores nerds jogando D&D. Eu, que já tinha acompanhado conteúdo similar aqui e ali, nunca tinha visto tanto o apelo, muito por conta da forma como descrevi que imagino histórias.
Ao vê-las contadas em tempo real por pessoas descrevendo ações, inventando falas e rolando dados, o meu modelo de narrativa mental não se encaixava direito. Era difícil me imergir, me focar no que estava sendo contado.
Até hoje, 3 anos depois, eu fico pensando o que exatamente tem nas campanhas do CR que funcionou para mim. Algumas coisas são claras: o fato de serem dubladores e se entregarem para a interpretação; o mundo rico e palpável com descrições deslumbrantes; a sinergia e carisma dos participantes.
É uma soma de tudo isso que torna o Critical Role tão popular ou tem algo a mais? Algo que se encaixa direitinho no modelo narrativo de um RPG. Talvez seja apenas uma tempestade perfeita.
Seja o que for, a verdade é que eu já estava engajado desde o fim do primeiro capítulo, de um jeito que nunca foi natural para mim. Como eu disse, sempre fui o diretor da cena na minha mente, alguém com total controle sobre como ela se desenrola a partir de um roteiro.
Já ao assistir à campanha Bells Hells, minha imaginação resolveu se adaptar, algo que deve ter muito a ver com relações parassociais que experimentamos em podcasts e outras mídias. Eu passei a me sentir um NPC de luxo na história.
Dessa vez, eu não os assistia de fora, mas acompanhava-os de dentro. Eu era mais um naquele grupo, um personagem daqueles que não é controlado por nenhum dos jogadores e que, por isso, eles acabam até esquecendo que está ali no canto, apenas observando.
Foi uma sensação tão nova em mim que me segurou por 3 anos assistindo religiosamente os capítulos. E que me fez chorar no final simplesmente por me despedir da história. Nos dias seguintes depois do último vídeo, fiquei pensando bastante sobre tentar aplicar o mesmo modelo para livros que ler no futuro. Saboreá-los em novas texturas. Quem sabe? Às vezes, a gente se apega demais ao que é confortável e acaba até esquecendo da plasticidade do nosso cérebro.
Ler novos autores, ver filmes de outras épocas e países, buscar contadores de história, campanhas de RPG, são todas opções interessantes para quem quer abrir a mente e, por que não, até começar a criar narrativas com um estilo próprio, uma mistura de tudo o que experimentou.
Epílogo: O único problema
O foco deste texto era mais falar sobre a importância de buscar formatos e modelos de narrativa fora do que você tem costume. Mas é importante notar que nem tudo são flores. Em alguns casos, você não vai gostar da história ou estragar a experiência em uma que você tinha tudo para gostar. Faz parte do processo.
A última campanha do CR para mim também teve esse lado frustrante. Por ser uma história de encerramento de arco, é natural que o mestre Matthew Mercer tenha guiado mais a narrativa do que em uma jornada solta de RPG. Não que as coisas fossem combinadas de antemão ou que as rolagens de dado fossem falsas. Eles nitidamente não fazem esse tipo de coisa.
Porém, era claro, desde o começo, que as coisas se encaminhariam para um fim pré-definido. Eu descreveria esse tipo de narrativa como fazer crescer uma árvore: se você quer que ela seja comprida e fina, você não força os galhos para a direção desejada, mas poda aqueles que saem do caminho que você quer.
Esse parecia o objetivo constante de Matt durante a campanha, podar linhas narrativas que desviavam o caminho do desfecho final. Como o diretor de cena que sempre fui lendo livros, não há nada de errado nisso. Você está seguindo a jornada proposta pelo autor e o destino dos personagens é de seu total controle.
Já imerso como eu estava naquele mundo, senti uma força invisível me puxando para onde não queria. Muitas decisões de história iam contra o meu gosto e isso deixava um amargo na língua. É talvez um efeito colateral que vou ter que lidar sempre que quiser me imergir tanto em um mundo assim.
De novo, isso não é um problema por si. Não é um erro técnico, filosófico ou moral. É apenas uma escolha, sendo que a mesma escolha não só não me atrapalhou, como aumentou meu interesse em outros formatos de contar história.
É apenas um lembrete de que sim, buscar coisas novas sempre vai gerar desconforto. Mas se ele é menor que o prazer do maravilhamento, sempre vale a pena.
Inclusive, já comecei a primeira campanha desde o primeiro episódio. Se vou conseguir ver todos um dia, não sei. Mas só de poder caminhar livremente pelo mundo criado por outras pessoas já me sinto presenciando magia.
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