Assimetria

Foto que mostra dois pés parados em um chão - Foto de cottonbro studio: https://www.pexels.com/pt-br/foto/pes-dentro-janela-de-madeira-4553161/ de casa


— Mas não é possível!

Depois desse acesso de raiva explosivamente controlado, ele continuou um tempo parado, com a cabeça levemente pendendo, mão direita segurando o queixo com o braço esquerdo cruzado na frente apoiando.

E os olhos fixos, tentando entender.

À frente dele, um sofá cinza, um pouco desbotado no pedaço perto da janela. Mas o sofá era tão dispensável à cena que ele nem registrava sua presença.

Acima dele estava o motivo de toda sua fúria ardente e contida. O quadro que ganhara da mãe, decorando sozinho a parede. Tinha uma moldura feita para parecer mais chique do que era. Madeira com alguns ornamentos entalhados, tudo pintado com uma tinta que já foi dourado vivo algum dia.

O quadro em si era só um quadro desses de feira. Representava uma cidade de interior, com rua de pedra, casas coloniais e uma igreja no morro lá do fundo. A perspectiva estava claramente errada, para quem se desse ao trabalho de olhar por mais de um segundo.

Não era feio, nem particularmente bonito. Era só um quadro.

Era só um quadro.

Ele tentou repetir para si mesmo pela enésima vez.

“É só um quadro, deixa quieto.”

Deixa quieto.

Era impossível deixar quieto.

A qualidade da moldura ou a perspectiva da pintura não eram um problema. O problema era que, desde a primeira vez que o colocou na parede, não ficava reto de jeito nenhum.

Depois da raiva arrefecer mais um pouquinho, voltou a tentar. Ajoelhou no sofá e pegou os dois lados com as pontas dos dedos. Estava com o lado direito um pouquinho para cima, quase nada. Era só um toque e tudo estaria resolvido.

Deu o toque.

Afastou-se.

O lado esquerdo estava um pouquinho para cima, quase nada.

— CARA…mbola.

Respirou fundo.

O interfone tocou.

Era seu amigo de infância. Formado em engenharia. Única pessoa que conhecia que tinha uma trena confiável, digital. Um profissional tem que ter uma trena confiável.

— Tá vendo?

O amigo ficou um tempo parado, com a cabeça levemente pendendo, mão direita segurando o queixo com o braço esquerdo cruzado na frente apoiando.

— Posso tentar?

— Fica à vontade.

O amigo ajoelhou no sofá e pegou os dois lados com as pontas dos dedos. Estava com o lado esquerdo um pouquinho para cima, quase nada. Era só um toque e tudo estava resolvido.

Deu o toque.

Afastou-se.

O lado direito estava um pouquinho para cima, quase nada.

— Que coisa.

— Tá vendo?

— Será que é a referência? O sofá pode estar torto. Ou o chão.

— Será? Pode olhar para mim?

O amigo sorriu. Por algum motivo, engenheiros aproveitam todas as oportunidades que têm para usar uma trena digital. Há algo de mágico para eles em confirmar números. E nível digital também. Há algo de reconfortante para eles em saber que algo está nivelado.

Primeiro testou o sofá em relação às pontas do quadro. Os números batiam. Depois arrastaram o sofá e ele mediu em relação ao chão. Os números batiam. O amigo testou o nível e suspirou de emoção quando presenciou uma superfície perfeitamente reta.

Mas o fato trazia ainda mais mistério para a situação. Se as duas pontas do quadro estavam equidistantes de todas as referências, por que ele parecia torto?

— Será que a moldura tá torta?

— Não. Essa eu já medi. Mas fica à vontade.

Vendo mais uma oportunidade de usar sua trena digital, o amigo mediu. Não estava torta.

— Ué.

— Pois é.

Os dois continuaram um tempo parado, com a cabeça levemente pendendo, mão direita segurando o queixo com o braço esquerdo cruzado na frente apoiando.

— E a família?

— Vai bem, e você?

— Tudo certo.

Depois de mais alguma conversa nesse tom, o amigo foi embora. Pediu a trena emprestado e ele, em vez de emprestar, indicou onde comprar. Engenheiros não emprestam suas trenas, assim como cozinheiros não emprestam suas facas. Faz parte do princípio da coisa toda.

No fim das contas, não chegou a comprar. Pra quê? Não é como se os números fossem mudar de um dia pro outro.

E não mudavam mesmo. Todos os dias, precisamente às 7:50 da manhã, ele tentava três vezes alinhar o quadro ao resto. Toque prum lado. Toque pro outro. Toque pro primeiro.

Um dia.

Uma semana.

Um mês.

Já nem contava mais.

Alguns outros conhecidos e conhecidos de conhecidos foram lá tentar resolver o mistério. A maioria leigos, mas todo mundo conseguia dar algum palpite que nunca dava certo.

Uma vez, a mulher de outro amigo, que era arquiteta, tentou argumentar sobre a luz que entrava torta pela janela. Era só uma ilusão de ótica causada pela sombra da moldura na parede.

Parecia uma ideia consistente. Por isso permitiu que ela fizesse alguns experimentos.

Trocar a cortina.

Mudar o sofá.

Ajustar a iluminação.

Pintar a parede.

Reformar a cozinha.

Fazer um espaço gourmet na sacada.

Nada adiantou.

Um número considerável de pessoas sugeriu que ele simplesmente tirasse o quadro da parede e parasse de pensar nisso. Mas, para ele, era como uma questão de honra. Tirar o quadro significava desistir.

Outras sugestões envolveram mudar o prego.

Mudar o gancho que segurava o quadro no prego.

Mudar a moldura.

Mudar de casa.

Mudar de emprego.

Sair mais ao Sol.

Encontrar os amigos com mais frequência.

Buscar um sentido na vida.

Fazer yoga.

Algumas dessas ele fez, sem resultados. A maioria, não conseguiu se motivar o suficiente a fazer.

A partir de um ponto, ele tentava consertar o quadro duas vezes por dia. Às 7:50 e às 19:50.

Então, às 7:50, 11:32, 19:50 e 23:32.

Então, de hora em hora, sempre que o relógio mostrava o minuto 47.

Até que a frequência passou a ser de 10 em 10 minutos. Isso impediu que ele continuasse trabalhando. Ou que assistisse vídeos mais longos. Ou que cozinhasse algo além de miojo e ovos.

Os amigos, com o tempo, sumiram.

Ele próprio sumiu.

Não se via mais além daquele quadro e a própria ação pareceu perder o sentido. Um pouco para a direita. Um pouco para a esquerda. E de novo.

E de novo.

E de novo.

E de novo.

Até que em um dia, uma terça ou sexta ou qualquer outro, a repetição sem sentido finalmente virou caos em sua cabeça. O que era, o que fazia, para quê. Não tinha mais resposta para nada.

Com ódio de si mesmo, chutou a parede. O pé doeu, mas ele nem percebeu. Com o tremer dos tijolos o quadro balançou e, como se fosse a coisa mais simples do mundo, alinhou-se perfeitamente.

Perfeitamente reto.

Ele continuou um tempo parado, com a cabeça perfeitamente reta, mão esquerda segurando o queixo com o braço direito cruzado na frente apoiando.

Abriu a boca para falar algo, mas só conseguiu sorrir e suspirar.

Sentiu uma leveza.

Um alívio.

Um sossego.

Queria ligar para todo mundo e avisar o que aconteceu. Avisar que estava certo, que um dia conseguiria. Mas não se lembrava mais do telefone de ninguém. Lembrava sim que tinha sido excluído da maioria dos grupos e uns amigos até o tinham bloqueado.

Mas agora tudo voltaria ao normal.

O quadro estava reto.

Seu problema terminado.

Só tinha que contar para alguém, quem quer que tenha sobrado.

O celular estava no quarto. Quando virou e deu o primeiro passo, quase caiu desequilibrado. Fez cara de quem não entendeu. Tentou outro passo. Foi menos desengonçado, mas esquisito mesmo assim.

Mais um e mais outro e conseguiu chegar mancando até onde queria. De frente para o espelho do armário, se viu inteiro.

Não era mais a mesma pessoa.

Cansado.

Duro.

Áspero.

Mas nem registrou essa mudança, porque havia outra que o fez suar e travar os dentes. Quando aprumou o corpo, do melhor jeito que conseguia, reparou em sua posição.

De alguma forma que não conseguia nem explicar, seu lado direito estava um pouquinho para cima, quase nada.

Uma perna estava mais curta?

Será que era só ilusão de ótica?

Será que o espelho estava torto?

Mas o espelho se alinhava com o resto.

Se o espelho tava torto, estava tudo torto?

Ou era ele?

Parado ali, sem conseguir respirar direito, puxou ar com força.

— CARA…mbola.

Pegou o celular e, em vez de ligar para algum conhecido, buscou promoções de trena digital. 




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