Introdução aos sonhos

Nuvens rosadas em um céu azul




Quando eu fiz oito anos, estava pronto para a pergunta mais importante que existe: por que a realidade é real e o sonho não? Se quando a gente pensa no que passou, as duas coisas são memória do mesmo jeito?

Bom, era importante para uma criança de oito anos.

Minha vó era a pessoa com mais boa vontade no mundo. Eu olhava as noticias ruins na TV e me perguntava se não era culpa dela. Se acumular tanta boa vontade não a tornava escassa para os outros. Será que alguém poderia ser tão egoísta assim? 

Má pessoa ou não, era a única que eu conhecia que me daria uma resposta. Meus pais responderiam algo que não perguntei. A internet responderia que estou à beira da morte. Os amigos da escolha não responderiam, apenas olhariam como se devessem se afastar de mim de repente. As opções de uma criança são sempre bastante limitadas.

Sem ter para quem correr, apelei para a pessoa mais egoísta do mundo. Aquela que me responderia exatamente o que eu precisava ouvir, porque tinha boa vontade nesse nível. Foi bem num domingo. Um primo e uma prima se revezando no Mega Drive que só tinha um controle e eu sentado no sofá, duro, ansioso pela resposta que iria receber. Ou até se eu conseguiria perguntar.

Eu sempre tive isso, de não conseguir formular a questão do jeito que ela parece ser na minha mente. Uma boa pergunta é como um guia. Ela induz a resposta que você quer e, ao mesmo tempo, que a outra pessoa quer dar. É um ato de construir confiança e saber mais do que querem que você saiba.

Como eu posso dar um exemplo… Imagine que você busca uma direção para algum lugar.

A faculdade em que eu estudei era bastante confusa. Era meio que dois prédios unidos no meio ao se construir um espaço fechado conectando os lados com uma escada e muitas portas. Portanto, dizer que algo era no segundo andar podia ser tão vago quanto dizer que a gente morre e vai para o céu. O céu que você tem na sua cabeça ou na minha? E que parte específica do céu? Parece algo muito vasto para não ser setorizado.

Enfim, quantas formas existem de se perguntar como eu faço para chegar na sala 203 para minha aula que começa em cinco minutos?

Por acaso, exatamente assim. “Como eu faço para chegar na sala 203 para minha aula que começa em cinco minutos?”

Parece o enunciado perfeito. Questiona a localização da sala, aponta para o agente da ação – no caso, eu – e sugere uma relação de empatia, solicitando que a pessoa se coloque em minha situação para explicar como ela, sendo eu, faria o caminho. De sobra, ainda aplica uma urgência nos cinco minutos, guiando o respondente a pensar na rota mais eficiente possível.

Perfeito, certo? Mas não seria assim que a pergunta sairia da minha boca. Com certeza, não. Minha mente até trabalharia toda essa lógica em menos de um segundo, mas o problema estava na ligação com as cordas vocais. Eu não sei dizer o que é.

E não era menos de um segundo, eram dias. Há dias eu pensava em como enunciar a pergunta do jeito exato que minha vó entregasse a resposta que me satisfizesse. É algo que deve ser estudado em psicologia ou alguma matéria do tipo. Como a pergunta perfeita pode limitar as opções a ponto de a única coisa a se dizer em troca é exatamente o que você quer que seja dito.

Não sei se é assim que funcionam os questionamentos, mas é assim que todo mundo quer que funcionem. Não vou ser hipócrita de mentir.

Na minha cabeça, a pergunta era perfeita. Era uma junção bem estruturada das duas que já fiz para começar:


Por que a realidade é real e o sonho não, se quando a gente pensa no que passou, as duas coisas são memória do mesmo jeito?


Novamente, um enunciado bem desenvolvido. Apresenta o dilema de cara, mas expande ao apontar o paradoxo que você espera que o respondente resolva em suas próprias palavras. O problema é que eu era uma criança de oito anos.

Crianças podem até pensar em interrogações longas, mas se perdem no meio. Eu me lembro de acordar naquele dia com meus pais comentando da ida até a casa dos meus avós e minha mãe mandando eu escovar os dentes. De frente para o espelho, eu repassei mais quatro vezes a pergunta na minha cabeça e então ensaiei em voz alta (não tão alta para meus pais não implicarem de novo com meus amigos imaginários).

Minha primeira tentativa foi:

    Puquê aedá é eau e o sonão, se…

 

Cuspi a pasta na pia. A segunda tentativa foi:

    Por que a realidade é real e o som não…

 

Eu nunca fui bom de pronunciar o ene-agá porque acabo comendo a vogal depois. Imagina com oito anos. A terceira tentativa foi:

    Por que a realidade é real e o sonho não?

 

Pausei por que esqueci o resto. Repassei de novo na cabeça. A quarta tentativa foi:

    Por que a realidade é real e o sonho não, se quando a gente pensa, passou as duas…

 

Desisti de treinar. Fiquei o resto do tempo, até o momento no sofá, dividido entre reforçar mentalmente a pergunta e pensar se não dava para simplificar. Crianças são boas em simplificar conceitos abstratos, mas quem iria me responder era uma adulta. Não dava para perguntar menos e esperar que ela respondesse mais.

A minha oportunidade chegou apenas depois do almoço. Meus primos foram expulsos do Mega Drive porque era hora dos adultos se divertirem com o incrível conceito de TV aberta. Trocaram por uma caixa de Jenga que nunca jogaram do jeito certo. Em vez de fazer uma torre e tentar não derrubar, faziam construções menores e mais variadas para depois jogar um carro voador em alta velocidade para causar o pior acidente possível.

Nessa hora, estavam todos na sala, menos minha avó. Ela estava na cozinha, arrumando algumas louças sozinha depois de espantar qualquer tentativa de ajuda. Até hoje acho que esses foram alguns dos passos mais difíceis que dei na vida. Eu conheci naquele dia o conceito de suar frio. Foi tudo isso no caminho entre cômodos. Eu quase desisti quando percebi que a pergunta queria me abandonar pouco a pouco. Cada vez que refazia na cabeça, perdia-se um pedaço.

Até hoje não sei como continuei em frente. Talvez a vontade de ter uma resposta fosse absurdamente maior do que o medo de perguntar. Quando ela notou minha presença, parado ao lado da geladeira, deu seu sorriso egoísta de quem quer ser a pessoa mais bondosa do mundo e pediu que eu pegasse um pano na segunda gaveta.

E esse foi o segredo.

Será que ela sabia? Será que ela sabia exatamente o que eu ia perguntar e a dificuldade que eu tinha, e criou uma técnica secreta para que eu não hesitasse pelo medo acumulado ao longo do dia? Ela seria cruel até esse ponto, de manter para ela uma técnica tão poderosa?

Até hoje não sei, mas quero acreditar que sim, que ela fez aquilo de propósito, consciente do meu dilema. Quando eu abri a segunda gaveta, me deparei com centenas, milhares de panos. Pode ser exagero de uma criança de oito anos, mas pareceu ser esse tanto.

Confuso, eu perguntei, “Qual?”. E ela respondeu, “Qualquer um tá bom”.

Naquele momento imprevisto de poder, tive que ponderar uma série de fatores. Eu pego o mais novo ou o mais velho? Será que o que parece mais novo é o mais novo mesmo? O bordado ou o pintado? Usos diferentes exigem panos diferentes? Minha cabeça girou tanto que até perdi a noção do que fazia por um segundo. Do que ela havia me pedido. Ela deu uma risada leve e disse, “Pode ser esse aí mesmo, com a flor”.

Depois de fragmentar a minha consciência em milhões de pedaços, ela rearranjou tudo de volta com uma simples indicação. E, ao pegar o pano com a flor, as palavras saíram da forma mais natural do mundo, como se fosse o meu pensamento em voz alta. De verdade. Sem filtro.

“Vó, por que a realidade é real e o sonho não, se quando a gente pensa no que passou, as duas coisas são memória do mesmo jeito?” 

Ela soltou um arzinho do nariz. Foi esse arzinho que me deixou em dúvida e até hoje eu posso jurar que ela sabia o que eu ia perguntar antes de eu abrir a boca. Coisa de vilã com o super poder de ler pensamentos e ajudar as pessoas a se sentirem confortáveis o suficiente para compartilhá-los com segurança.


Mas a resposta…


Bem, a resposta não era o que eu esperava.


“Ué, sonho é sonho e real é real.”


O que eu faço com isso? Foi exatamente o que eu pensei na hora. Com oito anos, com décadas pela frente para ter que lidar com esse dilema. Eu pensei na amplitude do tempo esticado de uma criança e foi a primeira vez que senti terror de verdade. Essa resposta era o que eu tinha para o resto da minha vida.

Minha vó sorriu e disse pra eu ir brincar. Cruel. Infalível. Indisputável. É a resposta que eu tenho até hoje.




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