Um medo maior do que a morte

Imagem do filme Pinóquio, de Guillermo del Toro


ATENÇÃO: Contém spoilers de Pinóquio de Guillermo del Toro (2022)


Se até uns anos atrás você me perguntasse qual é o meu maior medo eu responderia imediatamente: eu tenho um medo descabido da morte. De acordar para ir no banheiro no meio da noite e ter um momento intenso de desespero completo ao contemplar a ideia, até que eu consiga afastá-la pensando em algo mais tranquilo, tipo tudo o que eu tenho que fazer que vai me gerar ansiedade nos próximos dias.

Mas o que mudou desses alguns anos para cá? Na verdade, meu medo da morte continua o mesmo. Imenso e impossível de lidar, por isso só empurro ele para frente. O que aconteceu foi que um medo ainda maior e totalmente abstrato assumiu a liderança.

Vamos entrar nesse vespeiro na minha cabeça, vai ser divertido.

Morrer é fichinha perto de não morrer

Há algum tempo, quando eu já me contentava de que o medo da morte seria meu nêmesis até o fim da vida, eu me deparei com um desses vídeos que simula a evolução do universo nos próximos bilhões de anos. 

Eu acho esse tipo de coisa fascinante de ver, mas talvez esse eu devesse ter deixado passar. Quando o Sol cresce tanto que engole a Terra, eu dei risada. Quando nossa estrela se apagou, achei curioso. Quando o tempo começou a avançar e avançar e avançar, a brincadeira parou de ter graça.

Segundo essa teoria, o universo, tendendo à entropia, termina no nada. Quando todas as estrelas se apagam, quanto todos os corpos se desfazem, quando não há o que gerar gravidade, o próprio tempo deixa de existir.

É nessa hora que a única saída teórica para a morte, que é a imortalidade, simplesmente perde o sentido. Para quê viver mais se esse é fim de todas as coisas? Qual é a motivação para uma vida eterna se nem mesmo o universo pode me acompanhar?

Foi depois que comecei a pensar nisso que o próprio medo da morte arrefeceu. Não muito, mas agora eu tenho um contra-argumento para jogar na cara do meu ego.

E chegando aqui para o gancho que eu queria fazer desde o início, para o tema principal que você está até agora esperando para aparecer: foi assistindo Pinóquio de Guillermo del Toro que eu tive uma visão ainda mais simbólica sobre o papel da morte para a nossa própria identidade.

Pinóquio e a mortalidade

Quase toda versão de Pinóquio segue não apenas os pontos narrativos principais — fantoche de madeira, nariz, baleia, fada, você sabe — como também as mensagens que são passadas pelo menos há alguns séculos sobre o que é essa história.

Pinóquio é a história de um boneco de madeira que ganha vida para servir de companhia a um senhor que perdeu prematuramente seu filho. Na vontade de retribuir esse amor e ser como as pessoas são em volta dele, Pinóquio utiliza um desejo para ser uma criança de verdade.

É um conto bonito e tradicional, mas que eu não sabia que permitia tanto espaço para reflexões sobre a vida até ver a versão de Guillermo del Toro para essa história.

Na maioria de seus temas, esse Pinóquio é o mesmo de tantos outros. Todos os elementos estão lá, embora modificados para atualizar algumas discussões e servir a uma narrativa diferente. Porém, um de seus pontos centrais ganha uma dimensão bastante distinta em relação ao clássico da Disney e outras versões mais famosas.

Nessas iterações mais tradicionais, a vontade de ser um menino de verdade é uma recompensa ligada ao objetivo final do arco do protagonista. É o "felizes para sempre".

No Pinóquio de Del Toro, a mortalidade é uma escolha. E como toda escolha, é inseparável de suas consequências.

Essa nova dimensão muda completamente a dinâmica sobre o papel de Pinóquio que não ganha a mortalidade como um presente. Ao encontrar a própria Morte pela primeira vez, ele é apresentado às regras de sua existência: a cada vez que sucumbe, pode retornar sem qualquer tipo de punição além daquela mais cruel, o tempo.

A cada vez que morre, mais tempo ele precisa para voltar à Terra. Segundos, minutos, dias, meses, anos, séculos... Quem sabe até que o universo seja apenas um grande vazio, sem o próprio tempo para que ele possa se situar.

Essa parte de Pinóquio conversou muito comigo pelo que você pode ter percebido ao ler a primeira parte desse texto. O dilema é o mesmo. Como diria Chicó em O Auto da Compadecida, a morte é "o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre". Estranhamente, eu adoro essa citação.

Porém, quando eu penso na alternativa que é a imortalidade, toda a maquinação que meu ego criou durante minha vida inteira cai por terra. Por mais que a autopreservação faça parte do que somos, do que ela vale se você não tem um motivo para se autopreservar?

Esta é a parte mais brilhante dessa adaptação incrível: a decisão que Pinóquio deve tomar de maneira consciente, experimentando os dois lados e ciente de tudo que se perde e se ganha ao desejar ser um menino de verdade. Não apenas um epílogo para a jornada, mas um pedaço crucial dela.

Felizmente, é uma escolha muito difícil que não precisamos fazer. Às vezes, é mais confortante não ter a opção. Mas é uma escolha que, mesmo com tantas consequências, tem bastante sentido. Se agarrar ao tempo é soltar a mão de pessoas que a gente ama. E, querendo ou não, o tempo vai embora também, sem nenhuma pena de nos deixar para trás. Nos importar com os outros no limitado tempo que temos é o maior ato de autopreservação que podemos realizar.

PS.: Dito isso tudo, ainda tenho muito medo de morrer. MUITO!





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