Durante boa parte da minha vida adulta, se você me perguntasse qual é a minha memória mais antiga, eu tinha uma resposta na ponta da língua: uma vez que meus pais me levaram com meu irmão para passear no aeroporto.
Sim isso já foi programa de domingo uma época.
Se você quisesse saber mais, eu iria descrever aviões, cores, canteiros bem cuidados, de tudo um pouco. Uma memória vívida, bem definida e rica em detalhes como uma foto. Só tinha uma questão: eu também me lembrava do carrinho de bebê em que estava e que usava roupas claras.
Como poderia me lembrar de algo de quando era tão novo? Não é só lá para os quatro anos que começamos a reter esse tipo de memória de longo prazo? Mas eu me lembrava disso, não tinha como negar! Talvez eu seja essa pessoa especial que fala com orgulho do dia em que tentou pular do berço ou algo assim. Ao mesmo tempo que parecia improvável, era simplesmente um fato. Essa memória estava lá, prontinha, colorida, detalhada e viva como uma foto.
Alguns anos atrás, eu desvendei esse paradoxo perdido dentro de uma caixinha que minha mãe guarda. Nelas estão todos os álbuns de fotos da família. De quando ainda era preciso revelar os filmes. De quando botar o dedão para marcar o papel brilhante era uma das maiores transgressões que uma criança poderia cometer.
Imagem após imagem eu ia me recordando de vários momentos e realinhando o registro que tinha no cérebro sobre eles. Como eu era, como outras pessoas eram, como o tamanho das coisas se relacionava.
E foi em um desses álbuns que eu tive o choque.
Lá estava ela. A foto de um Guilherme que era só um tiquinho de gente sentado em um carrinho de bebê. As mesmas cores, o mesmo canteiro, o mesmo aeroporto. Como uma peça reta de Tetris caindo, reservada para aquele instante, todo o paradoxo foi resolvido. A minha memória mais antiga não era um momento, mas uma foto daquele momento.
Eu até hoje lembro do impacto dessa revelação. Todo mundo sempre fala que a gente é feito das memórias que a gente faz, mas eu nunca tinha sido confrontado com a teoria assim tão diretamente. Quantas vezes podemos confrontar o que lembramos com a versão fatual? Não dá para voltar no tempo. E, se você perguntar para quem também estava lá, essa pessoa provavelmente vai ter a própria versão que não necessariamente é a mais objetiva.
Mais do que isso, é possível que essa objetividade não exista de qualquer jeito. E é provável que seja algo que não podemos controlar. Quanto mais grave o trauma, mais distorcida a memória. Nós sabemos disso, mas isso não quer dizer que exista um caminho racional para fugir da armadilha.
Este é um texto mais curto e sem muito desenvolvimento. Eu só queria mesmo contar essa história porque estava pensando nela quando revisava um conto meu — finalmente terminei um novo!
Quando escritores criam personagens, definem quais são suas memórias e como se sentem em relação a elas. Inconscientemente, fazemos isso a vida inteira com nós mesmos. Não é louco isso? Tudo que nós somos e tudo o que vivemos é objetivamente subjetivo. É completamente não confiável. E mesmo assim, é o que temos para falar de nós mesmos. Mesmo que seja inventado. Somos impressionantes na nossa capacidade de acreditar em qualquer besteira que falamos para nós mesmos.
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